Considerações para o Dia Internacional da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial
* Por Gabriel Marques
A luta
contra o racismo e a discriminação racial tem demandado esforços
mundiais ao longo de quase dois séculos, mas sua completa eliminação
parece ainda estar longe de ser concretizada. De todos os países do
continente americano, o Brasil – grande beneficiário de
mão-de-obra africana – foi o último país a abolir formalmente a
escravidão (1888), mas seus efeitos são ainda visíveis na
sociedade brasileira.
O dia
de hoje, para além de qualquer celebração, marca, sobretudo,
momento para sérias reflexões acerca da realidade na sociedade
brasileira e das mudanças necessárias e urgentes, pois a prática
do racismo, um sistema de apartheid invisível e já tão entranhado
na vida social e econômica brasileira, continua a ultrajar a
dignidade de milhões de cidadãos, impedindo o desenvolvimento de
suas potencialidades, assim como privando o país de obter maior
benefício de suas contribuições.
O dia
21 de março foi declarado pelas Nações Unidas em 21 de novembro de
1969, como Dia Internacional da Luta pela eliminação da
discriminação racial em memória ao Massacre de Shaperville,
uma das vizinhanças de Joanesburgo, África do Sul. Ali em 1960, um
grupo de 20 mil negros se reuniu e caminhou pacificamente para
protestar contra a Lei do Passe, que obrigava negros da África
do Sul a portarem uma caderneta, uma espécie de passaporte, que
indicava onde podiam ir ou não dentro de sua própria cidade e
região. Até mesmo o uso de banheiros era segregado para brancos e
negros, numa África totalmente dividida pela cor da pele.
Com
uma força policial totalmente branca e opressora, os participantes
da marcha foram recebidos com rajadas de metralhadoras que mataram 69
pessoas indefesas – mulheres, homens e crianças – e deixaram
centenas de feridos. A notícia chegou finalmente à opinião
pública mundial, que pela primeira vez passou a dar atenção à
questão do sistema de Apartheid (Separação). Internamente,
entretanto, o governo sul-africano intensificou seu sistema
opressivo, levando várias das lideranças negras à prisão, dentre
elas, Nelson Mandela, ativista e advogado negro, preso em 1963 e
condenado à prisão perpétua, mas sendo libertado em 1989, devido à
continuada pressão internacional favor de um sistema de governo mais
aberto às reformas raciais. Em 1991 ele veio ao Brasil, terra do
racismo cordial, e contradizendo líderes negros brasileiros, afirmou
que o “país estava mais avançado do que a África do Sul na
construção de uma sociedade multiracial”, conforme noticiou a
Folha de S. Paulo em 02.08.1991. Em 1994, após as primeiras eleições
democráticas naquele país, o Congresso Nacional Africano (ANC), o
partido de Nelson Mandela, obteve 60% dos votos, elegendo-o
presidente da África do Sul.
No
Brasil, os esforços de Zumbi dos Palmares e toda uma legião de
ativistas negros, à exemplo de Luiza Mahin, Luiz da Gama, Abdias
Nascimento, Benedita da Silva e outros, não bastaram para findar o
quadro brasileiro de racismo velado. A influência superlativa,
entretanto, das Organizações não-governamentais e de centenas de
militantes negros durante o processo da Conferência Mundial das
Nações Unidas contra o Racismo, discriminação racial, xenofobia
etc., realizada em Durban, 2001, pressionou o Estado brasileiro para
que viesse a assumir algumas ações concretas na direção da
igualdade racial e redução da exclusão. Deliberações posteriores
como a criação de uma Secretaria da Igualdade Racial, implantação
da Lei 10.639/03 sobre o ensino da história e cultura
afro-brasileira e africana nas escolas públicas; a Lei 12.288/2010
que instituiu
o Estatuto da Igualdade Racial destinado a garantir à população
negra a efetivação da igualdade de oportunidades; o
endurecimento da legislação anti-racista no Código Penal e outras
são avanços consideráveis para uma única década (2000-2010).
Mas, ainda assim, medidas, como a da aprovação das cotas raciais
nas universidades brasileiras, apesar de Constitucionais, conforme
declarou o STF, ao votar como improcedente a Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, sua
plena aceitação continua a gerar controvérsias. Mas, os reflexos
da história de desigualdade e exploração continuam por toda parte.
Apesar
de recentes avanços da chamada ‘década inclusiva’, o sistema
econômico continua a reservar para os brasileiros de tonalidade de
pele mais escura as funções de mais baixa remuneração e o Brasil
continua a figurar entre os doze países mais desiguais, numa clara
evidência de que “o racismo é um dos males mais funestos e
persistentes”, conforme declaração da Comunidade Internacional
Bahá’í junto às Nações Unidas. O trabalho escravo ainda pode
ser encontrado em fazendas que vão do Mato Grosso ao Amazonas, do
Pará e Maranhão ao interior da Bahia; apesar das Convenções 25 e
105 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que dispõe
sobre a eliminação do trabalho forçado ou escravo. Apesar da
pressão sempre contrária dos ruralistas, foi finalmente aprovada a
PEC - Proposta
de Emenda Constitucional 438/2001, determinando o
confisco de propriedades em que for flagrado trabalho escravo e seu
uso para efeito de reforma agrária ou uso social.
De
acordo com dados produzidos pelo IPEA – Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada, a proporção de pobres no país entre os anos
2006 era de 21,5% para brancos e 46,7% para negros e a indigência
era de 4,5% para brancos e 11,8% para negros, evidenciando as
distorções baseadas na cor da pele ainda vigentes no país. Na
Bahia onde os afro-brasileiros somam cerca de 80% da população,
durante o carnaval, festa que deveria proporcionar e significar
inclusão social, a maioria de negros se contenta em segurar as
cordas de sua própria exclusão ao longo do maior carnaval de rua do
mundo, enquanto a mídia foca atenção naqueles que alegremente
pulam atrás dos trios ou desfilam com seus abadás customizados
pelos camarotes finamente decorados e financiados pelo mesmo mercado
excludente, com apoio do chamado ‘capitalismo de Estado’.
A luta
pela Eliminação da Discriminação Racial continua e Shaperville
figura na história tanto como um marco quanto uma cicatriz e mostra
que o futuro não é fruto do acaso, mas algo, um lugar ou uma
condição que se deve criar aqui e agora! “Os caminhos não são
encontrados e, sim, construídos”, como escreveu o erudito John
Schaar. O Brasil precisa continuar avançando na luta por estabelecer
a justiça e a equidade racial e, assim, fazer valer o bordão:
Brasil, um país de todos.
*
Gabriel
Marques é pesquisador das relações raciais, membro da ALARA - Afro
Latin América Research Association e ANAI - Associação Nacional
Apoio ao Índio, escritor e membro da Comunidade Bahá'í do Brasil.
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