Fonte: http://www.irohin.org.br/onl/new.php?sec=news&id=3726
Sociedade civil deixa Genebra temendo retrocesso nas conquistas de 2001
Ana Flávia Magalhães Pinto*
Dez dias de reuniões não foram suficientes para os representantes dos governos reunidos no Palais des Nations chegarem a um consenso sobre o documento que orientará os trabalhos da Conferência de Avaliação da Implementação da Declaração e do Plano de Ação de Durban, prevista para os dias 20 a 24 de abril de 2009, em Genebra, Suíça. Somente 40% do conteúdo do texto-base foi debatido. Realizada entre 6 e 17 de outubro, também em Genebra, esta segunda edição da Reunião Preparatória (PrepCom) seguiu ordem e ritmo muito semelhantes aos da primeira edição, ocorrida entre 21 de abril e 3 de março, no mesmo local.
Os atrasos de horário parecem constar no rol dos costumes, mas não explicam todo o problema. A baixa produtividade no cumprimento da agenda foi, novamente, gerada pelos extensos debates sobre os pedidos de credenciamento de ONGs não participantes da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas; pedidos de explicação sobre pontos anteriormente acordados nos documentos da III Conferência; reiterações sobre os procedimentos burocráticos básicos a serem seguidos antes e durante a Conferência; bem como pelos desacordos e embates sobre pontos relativos a orientação sexual, direitos sexuais, reparações, questões religiosas e de migração. No dia 8, por exemplo, o governo egípcio considerou necessário pedir recapitulação do conceito de racismo a ser empregado na Conferência de 2009, haja vista que haveria apenas uma ocorrência do termo na atual versão do documento.
Dirigida, sobretudo, para afinar o diálogo entre os representantes dos 192 Estados membros da ONU, a segunda reunião contou ainda com a participação de ONGs de vários países. O governo brasileiro foi representado pela conselheira Márcia Adorno, chefe da Divisão de Direitos Humanos do Itamaraty; Márcia Canário, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir); e Bruna Vieira de Paula, do Ministério das Relações Exteriores. Por sua vez, a sociedade civil brasileira se fez presente, a princípio, por meio dos integrantes de três ONGs: Lúcia Xavier e Jurema Werneck (Criola), Nilza Iraci e Rodnei Jericó (Geledés) e Iradj Eghrari (Bahá´í/Ágere).
Seja como for, é preciso atentar para um detalhe importante: ter a presença da sociedade civil não é o mesmo que garantir idêntico espaço de intervenção dos representantes governamentais. De acordo com as regras, sendo a ONU um parlamento de Estados, a sociedade civil tem participação limitada e controlada. Porém, a não-abertura para que as ONGs se pronunciassem nos momentos e pelo tempo já liberados, de 50 minutos após cada sessão de debates e conteúdos, foi motivo de polêmica. Após isso, as ONGs puderam fazer seus comentários na seqüência da leitura dos capítulos do documento-base. Diante dessa restrição, uma saída foi tentar o convencimento dos membros dos governos: “O que temos feito é falar diretamente com as representantes do governo, na tentativa de garantir que não haverá retrocessos” – comentou Jurema Werneck.
Várias outras ativistas se mostraram bastante preocupadas com essa pequena margem de ação da sociedade civil no contexto da Conferência de Avaliação e das Nações Unidas, na medida em que vêm de processos de resistência e/ou lentidão de seus respectivos Estados diante dos compromissos assumidos na Conferência de Durban. Como observou Sergia Galvan, do Coletivo Mulher e Saúde da República Dominicana e da Rede de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Caribenhas: “A falta de compromisso político dos Estados frente ao processo de revisão de Durban pode ser percebida de diferentes âmbitos. Apesar das recomendações para que fossem empreendidos processos nacionais, regionais e internacionais, apenas África e América Latina e Caribe realizaram conferências de avaliação. Ainda não existe um documento único que sirva de base para as negociações”. Ao mesmo tempo, alguns governos têm demonstrado a tendência de não financiar adequadamente o processo, recusando-se até mesmo a patrocinar a participação da sociedade civil.
Na avaliação apresentada pela Rede de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Caribenhas, da qual fazem parte as ONGs brasileiras Criola e Geledés, alguns países se destacaram com “participações bastante progressistas”, como: África do Sul, Chile, Reino Unido, França, Argentina, México, Argélia, Brasil, Suíça, ratificando os consensos alcançados nas conferências regionais da América Latina e Caribe e da África. Outros como Egito, Síria e Irã “adotaram posições mais conservadoras”.
Os últimos momentos do II PrepCom foram marcados por esforços das ONGs para manter na versão preliminar do texto-base conquistas já garantidas nos documentos de Durban, sobretudo, a permanência da orientação sexual e da migração como fatores de discriminação agravada. Uma vez que o documento não foi finalizado, decidiu-se pela realização da terceira Reunião Preparatória em janeiro de 2009. No âmbito da sociedade civil, persiste o intuito de algumas organizações para realizar o Fórum de ONGs, antes da Conferência de abril. As organizações, no entanto, vivem um impasse, pois, de um lado, não há consenso sobre a realização do evento e, de outro, ainda não foi criado um comitê que tenha legitimidade e seja responsável pela organização do Fórum. As organizações do Brasil e da América Latina estão em entendimentos para definir sua participação na possível iniciativa.
Credenciamento de ABGLT – Durante o II PrepCom, a delegação brasileira solicitou o registro da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais (ABGLT), rede que reúne 203 organizações em todo o país. Porém, um grupo de países islâmicos, liderado por Irã, Egito, Líbia e Argélia, com o apoio dos EUA e do Vaticano, defendeu a negação do credenciamento, sob os argumentos de o homossexualismo ser considerado crime em mais de 86 países e se tratar de uma prática que deve ser punida segundo o Alcorão. Após uma rodada de negociação entre o Itamaraty e os representantes de países islâmicos, a solução encontrada foi acatar o registro da organização na PrepCom desde que esta não toque no assunto da discriminação contra homossexuais durante a próxima reunião e a Conferência de Avaliação.
Jurema Werneck avalia que: “Esta condicionalidade absurda indica o quanto devemos ainda lutar, não apenas as organizações LGBTT, para que o direito à expressão de suas idéias seja um direito de todas e todos, independentemente da orientação sexual, raça, identidade de gênero ou o que seja. Acredito que devemos buscar garantir, de diferentes formas, a presença na Suíça de um grupo de representantes LGBTT, e não apenas a ABGLT, para que possamos expressar, de formar contundente, nosso repúdio a toda forma de discriminação. É preciso, portanto, que mais organizações deste movimento social se mobilizem para atuar neste processo”.
Panorama – Em 2001, apesar da estreita relação com o evento, o atentado do 11 de setembro nos Estados Unidos acabou roubando as atenções internacionais das discussões e dos embates que acabavam de ocorrer na III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, em Durban, África do Sul. No momento em que o tráfico transatlântico e a escravidão de africanos e seus descendentes eram reconhecidos como crime de lesa humanidade pela Organização das Nações Unidas (ONU), os aproveitamentos da intensa cobertura midiática sobre o atentado por pouco não foram suficientes para varrer para debaixo do tapete uma das questões centrais para a superação das desigualdades não apenas nos continentes africano, americano e europeu, mas no restante do globo. Tal como defendido em Durban, o sistema escravista nas Américas tanto fortaleceu o desenvolvimento do racismo e da discriminação racial quanto está entre as grandes causas geradoras das iniqüidades que comprometem o pelo exercício da cidadania de milhões de pessoas.
Passados cinco anos desde a Conferência de Durban, a ONU convocou seus Estados membros para a Conferência de Avaliação da Implementação da Declaração e do Plano de Ação, a ser precedida por conferências nacionais e regionais. Em junho deste ano, realizou-se em Brasília a Conferência Regional das Américas e Caribe, com participação de 25 países e 120 ONGs. A Conferência Regional Africana ocorreu em Abuja, Nigéria, em agosto. Os documentos resultantes destas duas Conferências formaram a base do documento debatido em Genebra. Na opinião dos representantes da sociedade civil brasileira, a realização dessas conferências foi uma sinalização de que as duas regiões, América Latina e África, mantêm seu compromisso com os acordos de Durban.
As ações desenvolvidas estão orientadas para o cumprimento dos quatro objetivos definidos pelo Comitê Preparatório para a Conferência de Avaliação, apresentados em agosto de 2007:
- Analisar os progressos e avaliar a implementação da Declaração e do Programa de Ação de Durban por todas as partes interessadas em níveis nacional, regional e internacional, incluindo a avaliação de manifestações contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerâncias correlatas, por meio de um inclusivo, transparente e colaborativo processo, e identificar medidas e iniciativas concretas para combater e eliminar todas as manifestações de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, a fim de incentivar a implementação da Declaração de Durban e do Programa de Ação;
- Avaliar a eficácia dos mecanismos de acompanhamentos estabelecidos em Durban e de outros mecanismos relevantes das Nações Unidas que abordam a questão do racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância conexa, a fim de melhorá-los;
- Promover a ratificação universal e a aplicação da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e avaliação adequada das recomendações do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial;
- Identificar e compartilhar boas práticas desenvolvidas na luta contra o racismo, a discriminação racial, xenofobia e intolerâncias correlatas.
*Jornalista do Ìrohìn, mestre em História (UnB)
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