Coisas da vida, vida de gado!
Colado à banca de jornal onde começou o tumulto durante o show dos Racionais MC´s, vi o exato instante em que uma PM nervosa e despreparada resolveu, em vez de conter uma algazarra de meia dúzia de jovens, estragar parte de uma das maiores festas de rua da cidade de SP, a Virada Cultural.
A impressão naquele momento, como me dizia um pai que tentava proteger seus dois filhos –uma criança e um adolescente- é que ação era premeditada, no mínimo inconsciente, a PM havia levado a espoleta do caos dependurado no coldre.
O argumento de que os militares foram atacados, como diz a nota da Secretaria de Segurança Pública, não convence a mais ingênua e desligada das testemunhas que estavam ali no epicentro da baderna. Não foram atacados. Ponto. Meninos, eu vi, estava colado e com muitos amigos juntos.
Somente depois de vários tiros para cima, bombas de gás lacrimogêneo, chuva de gás pimenta e um massacre de cassetete no lombo da platéia, uma garrafa PET foi atirada em direção aos homens de farda. Em seguida um saco com água e um sabugo de milho. Mas ai já era tarde demais, a chegada da Tropa de Choque fez a multidão perder de vez o rumo e as imagens da bandalheira dizem quase tudo.
Quem já foi a shows dos Racionais sabe que, pelo menos desde 1994, em uma apresentação histórica no Vale do Anhangabaú, a polícia não costuma ter lá a mínima paciência com os “manos”. O trato é bem diferente de qualquer outro evento cuja maioria do público é de classe média _seja um rave de música eletrônica ou um concerto de rock.
Nesse capítulo “vigiar e punir”, nem carecemos sacar do coldre um metido e esnobe Foucault. Reparem no que escreveu há uma semana, em artigo para a Folha, o sr. Caetano Lagrasta Neto, de 63 anos, nada mais nada menos do que um desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo: “O Estado não só vigia como pune, principalmente negros, putas, pobres, mesmo que o produto do crime se mostre reles e desde que estes agentes apodreçam nas prisões pelo furto de um xampu ou de algumas cebolas, enquanto aqueles (referência à elite) acabam libertos, logo depois -coisas, aliás, admitidas como edificantes exemplos.”
Poderia ser bastante óbvia a sentença aí acima se fosse na boca de qualquer um de nós. Não de um autoridade da própria justiça paulista que reconhece como funciona os labirintos do seu próprio mundo.
Corta de novo para a Praça da Sé. O céu colorido e a natureza tingindo, tingindo, como canta Cartola, alvorada, por volta das 5h da matina.
Para quem já tinha dado um rolê em todo o centro, ouvido de tango a Cauby e falado com os amigos espalhados nas várias atrações da área -”João Donato foi classe”, me diz aqui o escriba Bressane-, um mote vinha à cabeça: a cidade de SP finalmente inventara a sua grande festa, havia, pelo menos por uma noite redescoberto a possibilidade de celebrações públicas, a virada nos fazia sentir com um pé no carnaval multicultural do Recife –com direito a Nação Zumbi!- e nas tais “Noites Brancas” de Madrid, festa que inspirou a prefeitura paulistana nesta nobilíssima iniciativa.
Em um grupo de amigos, sob a alvorada e o sorriso fácil de quem se divertia sem neuras, ríamos também da molecada que subia na banca de revista e nas marquises dos antigos prédios à esquerda do palco. A molecada sobe e canta junto com Mano Brown nos primeiros 20 minutos de show, coreografia, ginga de b-boy, salto para o alto, pra cima com a viga moçada, nada grave, tudo leve como uma lei da física.
Chega a gloriosa PM. Desce todo mundo, mas com direito a uns cassetetes tirando fogo das canelas, claro. No osso. “Jornal da morte”, como no samba de Miguel Gustavo gravado originalmente por Roberto Silva: “Sangue, sangue, sangue/ Vejam só este jornal/ Verdadeiro hospital/ Porta voz do bangue-bangue/ Da polícia central.”
Até ai… tudo mais ou menos bem. A PM sai da área. Trocando um ou outro guri do plantel inicial, voltam uns dez de novo para cima da banca antes que o sol chege sobre as manchetes sem graça. Aí, já viu, a polícia chega… Bastava ter ficado um bedel de colégio ou um inspetor de quarteirão sozinho ali perto da banca que impediria a rapaziada de fazer sua graça. Sim, não pode destruir a banca, o patrimônio, mas se eu disser que não tinha menor sinal de violência na onda, vocês não acreditam.
A polícia começa a sua guerra premeditada. Mano Brown manda “Vida Loka”, um dos hinos informais da cidade junto com “Ronda”, “Sampa”, “Pânico em SP” e “Saudosa Maloca”.
A partir daí se formaram três caminhos para a multidão que estava do lado esquerdo dos Racionais: a quebradeira das ruas e os refúgios imediatos, o do palco e o da escadaria da catedral da Sé, onde me abriguei com os amigos. Uns malucos nostálgicos, de quando dom Paulo Evaristo Arns abria as portas para quem corria da polícia, tentaram destravar o templo para se proteger, mas não conseguiram, portão pesado dos diabos. C., brava amiga que havia sido quase imprensada quando derrubamos as tábuas de uma área restrita do evento, puxou um aplauso irônico à merda feita pela polícia. Quem estava lá “aplaudiu” bravamente. E nas picapes de KL Jay, o DJ dos Racionais, Deus fez flores e estrelas como no sample de Jorge Ben.
As bombas formavam um nevoeiro de outono. A Tropa de Choque “gentilmente” fez um corredor para os que resistiram e ordenava: “Embora, bora, bora, caralho”.
Apesar da PM ter tentado, desde a campanha das Diretas (1984) São Paulo não fazia uma festa tão bonita e imodéstia como esta! Coisas da vida, como no bordão do livro “Matadouro 5″ do velho Kurt Vonnegut, vida de gado!
Foto de Keiny Andrade/AE)
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