Após o incidente em que as portas de apartamentos de estudantes africanos no alojamento da Universidade de Brasília foram incendiadas, o professor Nelson Inocêncio (IDA/UnB) fala sobre a necessidade de discutirmos a raiz da questão: o racismo existente no ambiente acadêmico e na sociedade brasileira. Veja no artigo abaixo.
Nelson Olokofá Inocêncio - 03/ 04/ 2007 - Assessoria de Comunicação da UnB
O dia 28 de março, que passa a constar no calendário da Universidade de Brasília como Dia da Igualdade Racial, mais do que uma data marcante, é uma evidência de que o silêncio e a omissão possuem eficácia limitada. Quando digo isso, quero me dirigir à toda comunidade da UnB: técnicos-administrativos, corpos discente e docente. Como integrante desta casa desde 1980, pude observar nesses quase 30 anos que a universidade brasileira, como espaço de prestígio e poder, também se tornou uma espécie de feudo da hegemonia branca neste país. Assim, os efeitos nefastos desse processo tornar-se-iam perceptíveis aos olhos de qualquer pessoa mais atenta às desigualdades sociais.
Quem vive o cotidiano da universidade precisa entender o que determinadas situações querem nos dizer. Não podemos perder a dimensão histórica e adotar a velha prática brasileira de empurrar problemas para debaixo do tapete. Se a universidade é um lugar privilegiado para o debate, por que nos furtamos a ele, quando o racismo é o foco?
Nossas ações ainda são episódicas no sentido de problematizar a discriminação racial. Talvez muitos acreditem ainda no velho e desgastado mito da democracia racial brasileira. Provavelmente, existam outros tantos que, sem fundamentação nenhuma, arvoram-se a desqualificar as políticas públicas voltadas para a população negra.
Está provado que o silêncio ou a displicência não resolvem. No final da década de 1980, as paredes do Instituto de Artes apresentavam para toda UnB um grafite em que o agressor clamava “Morte aos negros!”. O texto era anônimo, logicamente, mas a provocação não deveria ter sido tratada como foi. Calamos o debate com algumas mãos de tinta branca. Nos anos 1990, constatamos registros de agressões a estudantes africanos. O erro, muitas vezes, é subestimar a dimensão das violências simbólicas, até que um dia elas se tornam físicas.
A cultura brasileira apresenta aspectos contraditórios, os quais nem sempre são notados pela grande parte da população. A hostilidade que ora nos chama a atenção evidencia uma tragédia anunciada. Há vários antecedentes que corroboram que o referido feudo pode até fazer algumas concessões, mas sempre dentro daquela lógica de que “o negro sabe o seu lugar”.
Reflitamos ainda sobre o continente africano. Como ele está para o nosso imaginário? A maioria dos brasileiros se envergonha das heranças africanas. Entendem que o legado africano restringe-se a músculos, esteio do trabalho escravo e, de quebra, a algumas peculiaridades exóticas que alimentam o “folclore” nacional. Falar de África e sua dimensão civilizatória no Brasil é assunto para poucos especialistas.
Além do mais, a África contemporânea a nós parece algo absolutamente desinteressante, distante, vazio. Tanto é que achamos admissível jovens africanos estudarem aqui. O que nos soa absurdo é enviar jovens brasileiros para estudarem e conhecerem as realidades africanas. Melhor pensar que não temos mesmo nada a ver com África. A mentalidade eurocêntrica toma conta do Brasil, que, curiosamente, possui a segunda maior população negra do mundo.
Se não quisermos enfrentar o trauma que o racismo provoca, viveremos perenemente em um mar de ignorância. Delegaremos o desafio às outras gerações. Faremos exatamente como aqueles que nos antecederam. Só não poderemos nos esquivar das surpresas desagradáveis. Até porque elas são conseqüência de nossa histórica omissão.
Acompanhamos as transformações do mundo sempre com larga margem de atraso no que concerne à questão negra. Fomos o último país a extinguir o tráfico nefando, o último a abolir a escravidão horrenda e agora, 120 anos depois, corremos o risco de mais uma vez ficarmos na contra mão da história. Não se iludam, as políticas anti-racismo aqui são tão emergenciais e necessárias quanto aquelas desenvolvidas nos Estados Unidos dos anos 1960 ou na África do Sul dos anos 1990.
Entorpecidos pelo mito da democracia racial, fatalmente estaremos condenados a permanecer na retaguarda, e o que é pior: por omissão e silêncio. Uma coisa é certa, a cura de todos os males não está no esquecimento. A questão racial, mais do que lembrada, deve ser discutida à exaustão em nome de uma sincera e bem resolvida celebração da diversidade brasileira.
Não basta termos políticas de inclusão racial se comunidade acadêmica como um todo não as respalda. Que aprendamos, ainda que seja pela dor, a assumir nossas responsabilidades. Não é mais possível que este tema ocupe a administração da UnB, e alguns outros espaços – como o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, o Coletivo Enegreser, o Centro de Convivência Negra e o Projeto Afroatitude –, ao mesmo tempo que permanece fora de nossa inquietações no importante processo de produção do conhecimento.
Nelson Olokofá Inocencio é professor e subchefe do Departamento de Artes Visuais e coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade de Brasília (UnB).
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